Capítulo IV

Uma semana se passou e eu comecei a receber alguns telefonemas de amigos da faculdade querendo saber se havia acontecido alguma coisa. Claro que as respostas eram sempre as mesmas e já estavam ensaiadas há algum tempo. Cada vez que ouvia o telefone tocar imaginava que poderia ser a Flá pra me dizer algo que mudasse completamente nossa situação. Sempre quis ter a iniciativa de ligar pra ela mas não me sentia preparado psicologicamente e ainda tinha um pouco de medo. Em contrapartida, aquela semana longe de tudo acabou me revigorando e eu percebi que não precisaria de muito mais tempo isolado do mundo pra conseguir voltar a ter uma vida normal. O prazer de viver coisas simples parecia ter retornado e isso me motivava a seguir, sempre em frente. Estava saindo pra comprar uma bebida quando ironicamente me vi frente a frente com a única pessoa que poderia mudar meus planos de não olhar pra trás. A Flá parecia muito deprimida e tava com uma cara de quem tomou um porre por tristeza e não por alegria. Os vícios costumam agir dessa forma. Se você sempre recorre a uma mesma coisa em momentos completamente diferentes pode ter certeza de que está viciado. Ela sempre me dizia isso. Desta vez estava na cara que a bebida estava ligada a tristeza e eu precisava ouvi-la.

-- Estou muito preocupada com você. Da última vez que a gente se viu você parecia transtornado e começou a dizer algumas coisas sem sentido.

-- Como coisas sem sentido Flá?

-- Não sei. Logo que eu entrei no apartamento você repetiu umas três vezes: “Talvez você tenha razão. Mal intencionado sou eu por querer manter uma relação com você.”. Eu entendo que me ver com outra pessoa não deve ter sido fácil, mas você parecia fora de si. Tive muito medo e acabei indo embora sem dizer nada.

-- Não, não faz sentido! Isso não aconteceu. Essa frase só saiu da minha cabeça e foi pro papel. Eu não te disse tudo isso.

Quais eram as respostas? As únicas coisas reais na situação pareciam apenas ter sido a traição e os diálogos. Quanto a traição me parecia evidente que tinha servido como gatilho para disparar todos os transtornos que eu passei, mas e os diálogos? Eu precisava saber o que era verdade, o que eu imaginei e o que eu ainda imaginava ser verdade. E nisso a Flá podia me ajudar.

-- E a ligação que eu te fiz? Você terminou tudo comigo por telefone Flá!

-- Ligação? Depois daquele dia a gente não se falou mais. Achei que você precisava de um tempo sozinho pra lidar com a situação.

Não! Aquilo tudo não podia estar acontecendo! Ou melhor, algumas coisas deviam ter acontencido e agora ela estava negando tudo. Eu precisava encontrar algo que me fizesse acreditar que nem tudo estava perdido. Que me desse novamente esperanças de que eu não estava completamente paranóico. Comecei a abrir todas as gavetas e procurar por todos os papéis espalhados pela casa. A cada folha encontrada passava dois segundos lendo seu conteúdo e depois disso a jogava no chão. Isso tudo durou uns 10 minutos até que dentro de um caderno antigo eu encontrei as folhas com o início da estória. Os diálogos estavam lá! A Flá os pegou rapidamente da minha mão.

-- Olha aqui! “Talvez você tenha razão. Mal intencionado sou eu por querer manter uma relação com você”. Você terminou o diálogo assim! Isso parece ser uma espécie de roteiro de como você imaginava que seria nossa conversa. Meu Deus!

-- E o segundo diálogo? – perguntei assustado

-- Ele não existiu! Tanto como Cá quanto como Flá essa conversa nunca aconteceu. Eu não te disse nem que terminaria nem que continuaria com você. Depois que eu sai do ap naquele dia a gente não se falou mais... Rafa.

-- Oi.

-- Você precisa de ajuda.

Não sabia mais o que pensar daquilo tudo. Todas as vagas lembranças que eu tinha não aconteceram ou só aconteceram na minha cabeça. A única certeza que eu tinha era de que houve a traição e que depois disso tudo ficou muito mais estranho do que eu imaginava. Já tinha ouvido falar em stress pós traumático mas não imaginava que poderia viver alguma coisa do tipo. Segurei muito forte a mão da Flá e em seguida a gente se abraçou longamente. Tive a sensação de que ela estaria do meu lado e me apoiaria na tentativa de descobrir exatamente tudo o que tinha acontecido naquela semana.


Comentários

Anônimo disse…
Léo..

"...Todas as vagas lembranças que eu tinha não aconteceram ou só aconteceram na minha cabeça..."´

Às vezes tenho essa impressão e, tenha certeza, é angustiante!
Que o Rafa fique bem! :)