Contos e monólogos


Pré-ocupada

Havia dois caminhos a seguir. O primeiro, a princípio, não levava a lugar nenhum e o segundo, e principal, levava ao primeiro. Em uma decisão sensata, ela escolheu o segundo. Ele era sim um caminho mais longo, ele era sim um caminho sem volta, ele era assim como qualquer outro, com apenas uma ressalva: o fato de levar ao primeiro, e este, a princípio, não levar a lugar nenhum. E assim ela viveu situações inigualáveis. Tomou chuva sábado a tarde, mas não esqueceu de segunda-feira. Tomou sorvete no inverno mas não esqueceu do último verão. Viveu fantasiando fatos mas não viveu todas as suas fantasias quando elas aconteceram de fato. Tudo por saber que aquele caminho a levaria ao primeiro e o primeiro, a princípio, não a levaria a lugar nenhum. Sua vida passou, suas ideias tornaram-se ultrapassadas e finalmente os dois caminhos se uniram. Mais alguns anos de caminhada e para a sua surpresa, aquele primeiro que, a princípio, não levava a lugar nenhum a levou ao segundo caminho. Ela se viu novamente frente a frente com o começo de tudo; pensou em tudo o que passou e na forma como se passou e concluiu: realmente este primeiro caminho não me leva a lugar nenhum.


Arquiteta

Sua mente sempre foi analítica. Ela projetou sua vida como uma arquiteta projeta uma casa. Tudo ali dentro tinha função e lugares definidos. Nada faltava. Nada transbordava. As coisas pareciam funcionar em perfeita sincronia. Porém, já com 35 anos, era evidente que uma de suas últimas prioridades agora era exatamente o que estava faltando para que seu projeto de vida estivesse concluído: ter um parceiro

Alguns já haviam passado por ali mas nunca conseguiram realmente despertar nela o desejo de criar uma área compartilhada dentro de si. E foi exatamente por perceber isso, que aos poucos, sem querer ocupar um espaço que ainda não havia sido criado para ele, que ele entrou na vida dela e dia após dia foi ganhando sua confiança. Aos poucos ele começou a desconfiar que seu projeto tinha uma falha estrutural. Algo que aparentemente havia sido feito no começo e que talvez ela não tenha percebido. A boa notícia é que provavelmente era passível de conserto, porém, para isso, ela teria que deixá-lo entrar. Eles ainda não se conheciam muito bem mas suas palavras sempre a faziam se sentir melhor e por isso ela lhe deu a chave.

Quando ele entrou, a primeira coisa que notou foi sua enorme generosidade. Havia um espaço reservado, uma sala, onde ela guardava o nome de todas as pessoas que já tinha ajudado. Definitivamente não seria ali que ele encontraria alguma falha e por isso continuou caminhando. Um pouco mais a frente havia um quarto. Enorme. Pintado de cores claras: azul e rosa. Aquele instinto maternal lhe fez se sentir ainda mais vivo e com mais forças para continuar procurando. A medida em que caminhava notou que na parede havia um mosaico gigante que representava todo o tempo em que ela lutou junto com sua mãe contra um câncer. Cada pequeno pedaço de papel foi um dia vencido e que no final se transformou em uma grande obra de arte com a imagem das duas abraçadas.

Algumas semanas já tinham se passado e ele começou a se perguntar se realmente conseguiria encontrar o que procurava. Foi então que um som lhe chamou a atenção, algo que começou a ditar o ritmo dos seus passos e quando menos esperava, estava ali, na sua frente, aquilo que sempre representou sua maior virtude: o seu coração. Com algumas marcas profundas mas não em pedaços estava revestido com uma lâmina de aço, quase que como uma armadura, um escudo. Ele começou então a explorar o que a motivou a querer se proteger daquela forma. Colocou seu ouvido sobre um dos ventrículos que ao bater expressou a dor de uma decepção amorosa que ela teve aos 18 anos. Isso justificava a armadura e ele sabia todo o trabalho que teria para removê-la. Dia após dia, com muito cuidado, ele a convenceu que precisava retirá-la para que suas feridas fossem tratadas. Foi um tratamento que durou alguns anos. Dentre tantos outros pequenos gestos de amor, a cada desejo de bom dia, ouvidos atentos ao que ela dizia e almoços preparados aos finais de semana, as feridas foram desaparecendo. Mais algumas semanas e tudo estava em perfeito estado. Ele já poderia sair, pois era tempo de começar também a olhar um pouco para si. Foi então que, inesperadamente, em uma tarde tranquila de quarta-feira veio o choque: o coração dela parou de bater. Uma parada cardíaca que o deixou estático. E por mais que ele tivesse pleno conhecimento de seu funcionamento, nunca foi médico, e portanto não tinha a menor ideia do que fazer naquele momento. A situação estava cada vez mais difícil e ele não tinha muito tempo para encontrar uma saída, algo que a fizesse voltar a se sentir viva... Ele precisava de uma luz, algo que o guiasse e foi exatamente o que encontrou. Uma luz muito forte que brilhava distante e a medida em que ele se aproximava começava a ofuscar os seus olhos. Nada poderia impedi-lo de chegar até ela e no momento em que simplesmente já não conseguia mais enxergar ele virou o rosto para trás, esticou o braço e a tocou... 

Naquele instante seu coração voltou a bater, ela abriu os olhos e ali estava ele, exausto, sem saber o que exatamente tinha acontecido. Enquanto ele ainda juntava forças para respirar ela falou:

-- Agora sou eu quem quer entrar aí dentro. Preciso conhecer a fundo cada detalhe do homem que foi capaz de arriscar a própria vida para me salvar

-- Mas o que exatamente eu fiz pra te salvar? 

-- Você tocou a minha alma


Código da Vinci

Ela sempre se viu como um livro. Onde sua beleza sempre esteve estampada na capa e se diluia até a página 5. Todos que até então a conheceram só se dispuseram a admirar a capa ou no máximo lê-la até a página 5. Pobres aqueles que nunca quiseram  explorar todos os seus mistérios, cada linha do que estava escrito e cada entrelinha do que não estava escrito. Ela se sentia especial, um livro raro, para poucos. Longe de querer ser uma obra notável ela só queria mesmo era poder compartilhar sua história com alguém capaz de interpretá-la de uma forma que desse ainda mais significado a todo o seu conteúdo. Isso parecia tão distante... muito distante... Até que ela o conheceu. 

Curiosamente ele também se via como um livro. Porém, estava esquecido no fundo de uma gaveta, sem capa e nem contracapa. Imediatamente ela pensou: eu quero ler

Os encontros começaram a acontecer e a cada novo capítulo explorado ela se via ainda mais na sua história. Algumas vezes tinha a sensação de já fazer parte dela, mesmo sem que antes eles nunca tivessem tido contato.  Um pouco insegura ela parecia não ter certeza se ele realmente teria interesse em ir além da página 5 e por isso resolveu esperar mais um tempo até começar de fato a se envolver. Três meses depois estavam os dois conversando sobre suas vidas quando, curiosa, ela quis saber porque o livro dele estava sem capa

- Eu joguei fora. E até te conhecer também estava jogando todo o resto. Você deve ter reparado que a partir da página 70 já não é possível ler mais nada. Sim, pois daquele momento em diante, a cada dia, uma memória foi perdida ao mesmo tempo que nada de novo foi acrescentado

- E o que te fez mudar? Querer voltar a escrever - ela perguntou

- Você - ele respondeu

- Me fale mais sobre isso

- O seu interesse em querer me ler e o meu interesse em querer voltar a me sentir vivo me fizeram mudar 

Intrigada por conseguir acesso tão rápido a algo tão valioso, ela perguntou:

- Por que quando nos conhecemos você confiou a mim tantas coisas importantes da sua vida sem nem mesmo saber quem eu era?

- Porque você é diferente. Depois de um tempo me tornei capaz de distinguir pessoas ordinárias de pessoas extraordinárias rapidamente 

- E você me acha extraordinária?

- Não

- Não? - ela disse surpresa 

- Te acho alguém misteriosa, quase indecifrável. Alguém que não se pode definir. 

Ainda espantada, mas agora com a forma como tudo se encaixava para os dois, ela tirou da bolsa um papel com uma pintura de seu rosto e o entregou

- O que é isso Monalisa? - ele perguntou 

- O retrato de alguém que já não se vê mais como um livro, mas sim como um quadro 


Sinais

Filha. Hoje você completaria 6 anos. Isso quer dizer que já faz quase 1 ano que você partiu. Não consigo esquecer que sempre quando lhe perguntavam sua idade você levantava a mão espalmada. Você mal sabia contar, muitas vezes sequer sabia o que estavam te falando, mas a resposta era a mesma: cinco anos. Desde que você nasceu, esse gesto já significou muitas coisas pra mim. Nos primeiros dias entendia como um chamado e logo estava ao seu lado tentando decifrar o que seu olhar queria me dizer. No seu aniversário de 1 ano, quando te vi levantar a mão e olhar pra frente, deduzi ser um aceno à todas aquelas pessoas presentes. A partir daí veio o tchau, o para, o oi e finalmente a resposta para a pergunta quantos anos você tem. Estava tudo sempre ali, na minha cara, e eu não imaginei que cinco anos seria o tempo que passaríamos juntos. E cinco anos passam tão rápido, e a vida passa tão rápido, e a sua vida passou tão rápido minha filha, tão rápido que eu não tive tempo de assimilar tudo o que você quis me dizer. E agora que eu tenho todo o tempo do mundo pra isso, agora que o tempo tem passado cada vez mais devagar, que o mundo tem girado no seu ritmo, no ritmo de uma criança que parecia só saber contar até cinco, agora é tarde. Tarde demais pra chegar mais tarde no trabalho e te ver acordar, tarde demais pra chegar mais cedo em casa e te colocar pra dormir, tarde demais pra deixar você molhar o meu terno enquanto toma banho, tarde demais pra perceber que você só viveria até os cinco e que de muitas formas tentou me mostrar isso. Enfim, tarde demais pra te ensinar a contar até cem.

Sobre o tempo

Aos 15 eles se conheceram. Ainda não sabiam nada sobre o amor, mas sentiam-se seguros quando estavam juntos . Não sabiam nada sobre a saudade, mas sentiam-se indefesos quando estavam separados. A única coisa que eles realmente sabiam era que seria desnecessário tentar explicar ou descrever aquela situação; eles só precisavam mesmo era sentir. E foi isso o que fizeram. Logo no segundo encontro via-se uma enorme sintonia crescer. Suas palavras dançavam em sincronia e eles já não se davam conta de quanto o tempo passava absurdamente rápido quando estavam juntos. Após este dia ficou claro que algo inexplicável estava acontecendo. Ao chegar em casa, ele percebeu que já lhe cresciam alguns pêlos sobre o rosto e procurava entender qual o sentido de ter envelhecido quase 6 anos desde a última vez em que a viu. Ela por sua vez tentava decifrar o que aqueles sapatos faziam no armário e como combinar todos os itens do seu novo estojo de maquiagem. Mais alguns dias e um novo encontro aconteceu. Agora em um bar movimentado e não em frente a igreja como da última vez. Eles chegaram, se cumprimentaram e o sincronismo de uma longa respiração ofegante deixou claro que os dois não sabiam o que dizer e nem o que fazer naquela situação. Um longo abraço que durou incontáveis noites marcou a despedida para ambos. A manhã seguinte fez dele um homem já com 30 anos e dela uma mulher prestes a comemorar seu aniversário. Seria contraditório tentar revê-la para lhe desejar muitos anos de vida. Este desejo só se concretizaria se ambos decidissem não se ver mais. E eles decidiram. Decidiram continuar apenas sentindo, sem tentar explicar ou descrever a situação. A cada nova oportunidade de se conhecerem mais um enxergava nas marcas de expressão do outro o tempo se esgotando. Com ambos aos 70 anos, o quinto e último encontro foi uma espécie de data marcada para a despedida. Vistas por outros olhos suas lágrimas caíam numa velocidade incrível. Estava claro que tudo terminaria quando um dos rostos secasse e o outro continuasse chorando pela recente perda. A situação caminhava pra isso até que em um ato de amor e cumplicidade, como para abafar os gritos de uma morte anunciada, eles se beijaram. Naquele instante o tempo parou; uma doce recompensa que os permitiu viver juntos cada minuto dos próximos 70 anos.


Carta aberta a Benício 

Benício, meu filho. Depois que você nasceu eu passei a entender o verdadeiro propósito de todas as coisas que eu fiz na minha vida. Descobri que aqueles anos passados na academia não foram para que eu mudasse o meu corpo, mas sim uma preparação para conseguir passar noites inteiras te segurando no colo. Que a minha criatividade, não foi feita para encontrar soluções diferentes em problemas do trabalho, mas sim para inventar quantas brincadeiras for preciso em um espaço de meia hora para te fazer feliz. Descobri que o meu gosto por desafios e tudo que é mais difícil, não foi algo para me impulsionar a conseguir recordes mundiais em jogos de corrida, mas sim uma preparação para uma longa jornada que começou muito antes do seu diagnóstico de autismo. 
 
Saiba que o papai andou pelo mundo inteiro te procurando e tentando decifrar quem realmente você é. Durante esse tempo conheci mais de um milhão de pessoas em mais de um milhão de lugares diferentes: nenhuma delas era você e nenhum daquelas lugares parecia ter sido feito pra você. Porque você é diferente e o seu mundo consequentemente é diferente. Você vive em um lugar tranquilo onde pode sentir tudo que está ao seu redor sem ser incomodado pelos movimentos daqueles e daquilo que o cerca. Ah, mas como eu não pensei nisso antes? Eu te procurando aqui na superfície enquanto você sempre esteve aí... no fundo do mar. Algumas vezes eu até cheguei a olhar aí pra baixo, mas minha visão era limitada, rasa, superficial... O balanço das águas me confundia e me fazia acreditar que aquele que estava aí no fundo não era você. 

Recebemos o diagnóstico e a jornada que já era intensa, se tornou intensa e profunda. Tratei então de começar a fazer vários cursos e me tornei especialista em mergulho. Desde então todos os dias consigo chegar até você e braçada a braçada te ensino a nadar e desviar de tudo que te impede de chegar comigo a superfície. Por enquanto eu ainda volto sozinho, geralmente depois de você dormir. Aproveito para me recuperar, respirar e juntar todo o ar que consigo para que no dia seguinte eu possa ficar ainda mais tempo aí com você; enxergando através dos seus olhos as belezas e a imensidão do mundo que você vive e também sonhando em te mostrar as belezas e a imensidão que existe aqui em cima. Eu sei que quando você chegar a superfície não deixará de ser alguém que pertence ao fundo do mar. Assim como eu não deixei de ser alguém que pertence a terra mesmo depois de ter me apaixonado pelas profundezas do oceano. Por isso todos os dias, e absolutamente todos os dias, meu filho, deixo aí com você um pouco de quem eu sou e trago comigo um pouco de quem você é: uma criança que me fez perceber depois de 36 anos que essa minha aptidão pela escrita sempre teve somente um propósito: escrever essa carta para você.

Esperança

Volta, porque o caminho que agora você segue é o mesmo que eu estou seguindo e que se torna muito mais bonito quando estamos de mãos dadas. Volta, porque sem você eu ainda sou aquele dominado pela insegurança, que não sabe medir a quantidade de água que se deve colocar no arroz e nem o número de vezes que se deve dizer “eu te amo” pra alguém em uma semana. Volta, porque eu preciso do seu equilíbrio, porque eu não aguento mais tentar me equilibrar nessa linha de tempo que se criou depois da nossa separação. Volta, porque quanto mais o tempo passa mais eu sinto sua falta e isso tem gerado uma lacuna enorme entre a gente, um abismo que eu temo um dia se tornar maior do que o nosso amor. Por favor, volta, pelo amor de Deus, pelo nome de Deus que eu levo em vão, por todas as coisas erradas que eu fiz e me arrependi, pela lágrima que eu não deixei cair quando terminei com você e que agora cai em contradição a aquele momento. Volta, porque foi por você que eu mudei meu número pra ficar mais fácil nos falarmos e foi também por você que eu parei de falar tanto e comecei a ouvir. Com você eu não precisava mais das luzes do palco voltadas só pra mim. E agora, ironicamente no escuro, tento em vão te escrever sobre uma vida que já está toda resumida naquela página que você virou. Então volta, volta essa página, porque eu preciso continuar de onde parei.

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