Carta aberta a Benício


Benício, meu filho. Depois que você nasceu eu passei a entender o verdadeiro propósito de todas as coisas que eu fiz na minha vida. Descobri que aqueles anos passados na academia não foram para que eu mudasse o meu corpo, mas sim uma preparação para conseguir passar noites inteiras te segurando no colo. Que a minha criatividade, não foi feita para encontrar soluções diferentes em problemas do trabalho, mas sim para inventar quantas brincadeiras for preciso em um espaço de meia hora para te fazer feliz. Descobri que o meu gosto por desafios e tudo que é mais difícil, não foi algo para me impulsionar a conseguir recordes mundiais em jogos de corrida, mas sim uma preparação para uma longa jornada que começou muito antes do seu diagnóstico de autismo.

Saiba que o papai andou pelo mundo inteiro te procurando e tentando decifrar quem realmente você é. Durante esse tempo conheci mais de um milhão de pessoas em mais de um milhão de lugares diferentes: nenhuma delas era você e nenhum daquelas lugares parecia ter sido feito pra você. Porque você é diferente e o seu mundo consequentemente é diferente. Você vive em um lugar tranquilo onde pode sentir tudo que está ao seu redor sem ser incomodado pelos movimentos daqueles e daquilo que o cerca. Ah, mas como eu não pensei nisso antes? Eu te procurando aqui na superfície enquanto você sempre esteve aí... no fundo do mar. Algumas vezes eu até cheguei a olhar aí pra baixo, mas minha visão era limitada, rasa, superficial... O balanço das águas me confundia e me fazia acreditar que aquele que estava aí no fundo não era você.

Recebemos o diagnóstico e a jornada que já era intensa, se tornou intensa e profunda. Tratei então de começar a fazer vários cursos e me tornei especialista em mergulho. Desde então todos os dias consigo chegar até você e braçada a braçada te ensino a nadar e desviar de tudo que te impede de chegar comigo a superfície. Por enquanto eu ainda volto sozinho, geralmente depois de você dormir. Aproveito para me recuperar, respirar e juntar todo o ar que consigo para que no dia seguinte eu possa ficar ainda mais tempo aí com você; enxergando através dos seus olhos as belezas e a imensidão do mundo que você vive e também sonhando em te mostrar as belezas e a imensidão que existe aqui em cima. Eu sei que quando você chegar a superfície não deixará de ser alguém que pertence ao fundo do mar. Assim como eu não deixei de ser alguém que pertence a terra mesmo depois de ter me apaixonado pelas profundezas do oceano. Por isso todos os dias, e absolutamente todos os dias, meu filho, deixo aí com você um pouco de quem eu sou e trago comigo um pouco de quem você é: uma criança que me fez perceber depois de 36 anos que essa minha aptidão pela escrita sempre teve somente um propósito: escrever essa carta para você.

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